terça-feira, 27 de julho de 2010

Ícaro e a Ameaça Invisível

A lembrança mais antiga que tenho da infância está ligada a um sentimento: o medo. Medo do desconhecido, do invisível, do sobrenatural. Sou filho único, e desde sempre me acostumei a ser solitário, visto que não havia crianças da minha idade na família. Eu era sempre cercado de adultos que me adulavam, me enchiam de presentes e se satisfaziam vendo-me quieto num canto, brincando sozinho. Eu era feliz no meu mundinho particular, eles eram felizes por não precisarem se preocupar com uma criança levada que pudesse criar milhares de problemas.

Foi em um desses momentos de solidão infantil no meu quarto que o medo em estado bruto pela primeira vez se manifestou, na forma de um palhaço sobre um triciclo. Esse brinquedo, com o qual nunca simpatizei, estremeceu repentinamente no canto em que estava encostado, virou-se na minha direção e lentamente seguiu em frente. A cena ficou gravada na minha mente como uma tatuagem. O ranger aflitivo daquelas rodinhas, o sorriso congelado e tenebroso do palhaço, o movimento uniforme do brinquedo que não era movido a pilhas ou a qualquer outra força externa que justificasse aquele deslocamento repentino. Isso foi demais para um pobre menininho de cinco anos de idade.

Corri, chorando, em busca de auxílio, gritando aos quatro ventos que o palhaço medonho estava vivo. Minha mãe, com toda ternura e paciência que só o instinto maternal pode prover, a muito custo me acalmou e voltamos ao quarto, onde eu deveria explicar o que estava acontecendo. Entramos no quarto, minha mãe à frente e eu agarrado à confortadora barra da sua saia, e indiquei o instrumento do meu temor, parado inocentemente embaixo da minha cama. Após minucioso exame do brinquedo, do caimento do chão e do grau de luminosidade do cômodo, seu parecer foi categórico: aquilo havia sido fruto da minha fértil imaginação infantil. Aliviado, acreditei no que disse, afinal como ela poderia estar enganada, logo a pessoa que me ensinou tudo o que eu sabia até então?

Passei a tentar conviver com o fenômeno dos objetos que se moviam sozinhos, sem motivo aparente, com cada vez mais frequência. No início da vida escolar, meus colegas falavam de amigos que eles tinham e que ninguém mais enxergava: super-heróis, fadas, anjos, bichos falantes. Exultante, me dei conta de que eram meus amigos imaginários que movimentavam as coisas ao meu redor! Só achava uma pena eu não conseguir enxergá-los. E foi essa a teoria apresentada aos adultos, que passaram a desconfiar de mim, achando que eu estava inventando histórias para chamar a atenção e criando bodes expiatórios irreais para acobertar minhas travessuras. Quando ninguém estava olhando e um copo repentinamente pulava da mesa, um vaso se espatifava contra a parede ou roupas eram arrancadas dos cabides e rasgadas, minhas explicações eram recebidas com ceticismo e surras, cada vez mais intensos e inclementes. Muitos diziam que eu estava me tornando um grande mentiroso, o que era uma coisa muito feia para uma criança.

Cheguei à pré-adolescência sob constantes olhares de reprovação e desconfiança. Passei a evitar o convívio com as pessoas ao meu redor, pois ninguém entendia o que acontecia comigo. Também procurei deixar de lado esse lado fantasioso da vida, afinal já estava bem grandinho para me apegar a essas coisas de criança. Foi então que o horror, há tantos anos esquecido, chegou despercebido e novamente cobriu-me com seu manto negro. Meu pai ouvia um programa de rádio que apresentava acontecimentos sobrenaturais enviados pelos ouvintes, e eu não pude evitar de ouvir essas narrativas, com crescente pavor e paradoxal fascinação. Foi então que comecei a associar os fenômenos narrados pela voz sombria do radialista com o que acontecia comigo. Através da audição daquele programa, que eu morbidamente não conseguia evitar, descobri o nome de minhas indesejáveis companhias: assombrações.

Meus dias passaram a ser um suplício, repletos de sobressaltos, palpitações, olhos arregalados e horrores indizíveis brotando em minha mente. A cada cadeira arrastada, eu imaginava um terrível demônio levantando-se e caminhando em minha direção. Por trás do movimento das cortinas em noites sem vento, fantasiava hordas de mortos-vivos arrastando-se sorrateiramente, preparando um terrível ataque. Bruxas, lobisomens, vampiros, criaturas grotescas de fossos infernais. Cada objeto em movimento, cada ruído na escuridão, cada toque repentino no meu corpo franzino, traziam consigo a dúvida de qual ser das trevas estaria por trás de tal ato.

Na inquietude da adolescência, passei de vítima aterrorizada a questionador implacável. Busquei respostas nos mais diferentes recantos da religião, do ocultismo, das crenças populares e das superstições em geral. Perdi a conta dos rituais dos quais participei, das longas horas perdidas em leituras de livros arcaicos e proibidos, das intermináveis consultas a especialistas da luz e da escuridão, cada deles me lançando em caminhos distintos, tortuosos e infrutíferos.

Quando iniciei minha vida acadêmica, era tido como um excêntrico sem amigos, um amalucado que se isolava do mundo, com interesses em assuntos que as pessoas normais evitavam. E foi com um professor da faculdade de psicologia na qual ingressei que encontrei uma resposta convincente. Após diversas conversas fora da aula, sobre o oceano sem fim da psique humana, descobri que ele era parapsicólogo. Expus meu problema e, voluntariamente, permiti que ele me examinasse, sendo a conclusão desses estudos minuciosos a palavra telecinésia. Finalmente, descobri a origem da angústia que é eterna companheira da minha existência: paranormalidade. Nunca havia cogitado uma resposta que não fosse um agente externo, e vi nesse momento que era eu mesmo o causador de tudo aquilo. Imediatamente, iniciei um exaustivo trabalho junto ao meu professor e a uma equipe de parapsicólogos indicados por ele.

Tornei-me seu principal objeto de pesquisas, e o pleno controle de minhas qualidades telecinéticas passou a ser a prioridade na minha vida. Ansioso e pressionado, não consegui evoluir um milímetro sequer na jornada rumo ao controle de meus poderes. Passei por diversos especialistas e equipes, mas nada deu resultado. Os anos foram passando e o desânimo passou a estar cada vez mais presente na minha vida. Especialistas chegaram a cogitar que os gatilhos de comandos telecinéticos que eu gerava eram originados no meu subconsciente, independentes da minha vontade. Sentindo-me um derrotado, desgostoso por não conseguir resultados, mesmo havendo descoberto a fonte de meus problemas, abandonei os estudos e as experiências.

Voltei para a casa de meus pais e sobre eles despejei todas as minhas frustrações. Ofensas à minha pobre mãe e ameaças de agressão física ao meu pai passaram a fazer parte do meu dia-a-dia, pontuados por murros nos móveis, chutes nas portas e louças quebradas. A telecinésia fugiu totalmente do meu controle, e eu já não sabia quanto daquela destruição doméstica tinha origem na minha força física ou nos meus malditos poderes paranormais. Em um dia fatídico, após mais uma das discussões desmedidas e altamente ofensivas que eu sempre dava um jeito de iniciar com meus pais, eles saíram apressados com o carro da família, buscando algum lugar onde estivessem livres da fúria do filho mal-agradecido, mesmo que por alguns momentos. Menos de uma hora depois disso, recebo uma notícia mais devastadora que um ataque paranormal que explodisse o meu crânio: não muito longe dali, meu pai havia perdido o controle da direção do veículo, colidindo violentamente com um poste. O carro pegou fogo e eles não conseguiram sair, por estarem presos nas ferragens. A morte de meus pais havia sido lenta e dolorosa.

Sob esse golpe do destino, uma dúvida passou a me assolar: seria eu o responsável pelo mal-funcionamento de um carro que sempre foi impecável, visto que meu pai nutria profundo apreço por ele? Aquele acontecimento foi um tapa na cara dado pela realidade, mostrando-me a ameaça que eu representava para a sociedade. Rememorei diversos pequenos incidentes que aconteceram ao meu redor, durante toda a minha existência, começando a sentir o peso da culpa por eles e acreditando que eu era o catalisador de todas as desgraças que me cercavam. Eu já não tinha mais nada a perder ou ao que me apegar, o que facilitou minha decisão: iria me isolar do mundo. Com a roupa do corpo, saí caminhando inconscientemente, sem cogitar comparecer ao funeral de meus pobres pais.

Perambulando a esmo pela cidade, analisei como as minhas impressões do mundo foram mudando com o passar do tempo. Quanta saudade tenho da época na qual acreditava em fantasmas, quando a ameaça era externa, e os culpados eram os outros! Com as assombrações, ainda havia a tentativa de correr, de virar a cabeça para o outro lado, de tentar ignorar os visitantes indesejados. Mas a telecinésia sou eu, passei a ser uma ameaça para o mundo. Sem me dar conta, caminhei por horas, vindo parar no interior da obra de um grande edifício, quase concluída, na qual nem sei como entrei. De pé, a trinta andares de altura, encarei o por-do-sol da fria cidade sobre um beiral sem segurança alguma. Despido de angústia, sofrimento e revolta, saltei. Não por estar cansado desta existência tumultuada, nem tomado por cega insanidade. Sou movido apenas pela mórbida curiosidade.

As pessoas dizem que quando se está perto da morte, sua vida inteira passa diante de seus olhos, e meu relato confirma essa teoria, visto que todo este depoimento durou apenas um segundo, desde o início de meu irreversível voo livre. Pouco mais que isso me separa do concreto rude e impessoal que me aguarda lá embaixo, e então terei a curiosidade saciada: tornarei-me um fantasma, como os que me assombraram na primeira metade da minha vida, ou serei salvo pela telecinésia que se revelou tardiamente na segunda metade? Finalmente, uma resposta imediata a um questionamento que tenha feito. Pela primeira vez na vida, sinto-me realmente livre.

2 comentários:

  1. Encontrei comigo mesmo lendo sua postagem.
    Nem sempre a objetividade externa compreende a subjetividade que se passa por dentro, então fica-se incomunicável.

    Abração amigo sempre.

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  2. Bem observado!
    É uma história que parte do indivíduo para o ambiente ao redor, e não o contrário.
    Abraço.

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